“Ser trans no Brasil não é fácil”, diz vencedora de reality

Ela não pensava em ser modelo. Aliás, moda era um assunto que gostava e acompanhava de longe, até que veio o convite para participar do programa “Born To Fashion”, primeiro reality show para revelar modelos trans mulheres, do Canal E! Entertainment, que foi ao ar em 2020. E a ex-estudante de Psicologia Cecília Gama, com 22 anos, foi a vencedora e viu sua vida transformada. Hoje mora em Londres, está construindo uma carreira como modelo, mas lembra que ainda há muito pelo que lutar.

Cecília Gama (Foto: Ivan Pacheco/Divulgação/Canal E!)
Cecília Gama (Foto: Ivan Pacheco/Divulgação/Canal E!)

Em entrevista exclusiva ao “Elas no Tapete Vermelho”, nessa semana que acontece a Parada LGBTQIA+, em São Paulo, Cecília é enfática ao afirmar que ser trans no Brasil não é fácil. “Vivemos em uma sociedade que atrela nossos corpos a uma imagem marginalizada”, disse, ao revelar ainda que quando começou a fazer a transição, enfrentou problemas até em sua família. Hoje, comemora o fato de ter voltado a passar o Natal de 2022 em casa. “Era algo que eu sentia saudades”, afirmou.

Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)
Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)

A segunda temporada do “Born to Fashion” está em fase de produção e tem estreia prevista para 2024, tendo à frente, como apresentadora, novamente a top model Lais Ribeiro, que ressalta a importância de espaços como esse para dar voz a pessoas marginalizadas, como várias participantes da primeira temporada. “Teve quem foi expulsa da cidade dela apedrejada”, lembrou Lais Ribeiro ao “Elas no Tapete Vermelho”.

Lais Ribeiro e Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)
Lais Ribeiro e Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)

“O programa mostra situações fortes, que as pessoas precisam assistir”, acrescentou a top. Cecilia Gama lembra que teve que batalhar muito, mesmo após o programa, para ocupar espaço. “Meu objetivo agora é desbravar o mercado internacional”, confessa. E está começando a trilhar esse caminho. Já desfilou nas semanas de moda de Londres e Paris, para as marcas Julien Macdonald e Avellano, respectivamente. “Meu sonho é desfilar para Saint Laurent, Versace e Celine”. Vamos torcer.

Confira trechos da entrevista exclusiva que Cecília concedeu ao “Elas no Tapete Vermelho”.

Elas no Tapete Vermelho – Você era estudante de psicologia até entrar para o Born To Fashion. O que te levou a se inscrever para o reality?

Cecilia Gama – Fui descoberta por uma das coordenadoras de castings. Após me apresentarem o projeto fiquei superempolgada em participar. Nunca tive um sonho de ser modelo, mas fiquei muito feliz com o resultado de tudo isso.

Elas no Tapete Vermelho – Depois dele, você parou a faculdade para se dedicar a moda. Você imaginava essa mudança em sua vida?

Cecilia Gama – Nunca imaginei que pudesse ganhar, eu lembro que comentei com uma amiga que iria mais pela diversão e pelo dinheiro. Pra mim, era um desafio porque não sabia muito sobre o assunto. Eu amava o mundo da moda, mas nunca tinha nem posado pra uma câmera antes. Após o programa, descobri uma nova paixão e decidi ir atrás dela, me tornar um dos nomes da moda brasileira.

Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)
Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)

Elas no Tapete Vermelho –  E como essa mudança tem sido desde o final do reality até agora? Fale um pouco de seus trabalhos atuais e o que você tem aprendido. Está sendo fácil?

Cecilia Gama – O BTF me abriu muitas portas e me deu a oportunidade de colocar o pé na moda, mas não foi muito fácil. Principalmente porque estávamos vivendo um momento muito novo para todo mundo. Lembro que após o programa, a pandemia ainda estava impossibilitando muito a minha inserção nesse mercado, até porque não estavam acontecendo muitos trabalhos na época. Eu tive que lutar bastante para ter um mínimo reconhecimento. Atualmente estou tentando desbravar o mercado internacional. Fui agraciada em poder participar das semanas de moda de Londres e Paris e estou tentando consolidar o meu nome aqui. Ainda tenho muito que provar, mas estou muito feliz de ter chegado onde cheguei.

Elas no Tapete Vermelho – O que você almeja fazer com seu trabalho na moda? Desfilar ou posar para alguma grife especial ou algum outro desejo?

Cecilia Gama – Eu quero poder desfilar para grandes nomes como Yves Saint Laurent, Versace e Celine, esse é o meu top 3 e com toda certeza ser capa de alguma revista aqui fora.

Cecília no desfile final do "Born To Fashion" (Foto: Ivan Pacheco/Divulgação E! Entertainment)
Cecília no desfile final do “Born To Fashion” (Foto: Ivan Pacheco/Divulgação E! Entertainment)

Elas no Tapete Vermelho – Você pretende retomar a faculdade de psicologia algum dia?

Cecilia Gama – Após o término do BTF eu imaginei que iria demorar pra retornar pra faculdade, porém recentemente estou pensando nisso mais que nunca. A moda é um mercado muito instável e injusto, quero continuar fazendo o que faço porque é o que eu amo, mas quero retomar meus estudos pra ter uma certa garantia e a possibilidade de me ver em outras áreas.

Elas no Tapete Vermelho –  Você já deu depoimentos de que é privilegiada por ser branca e ter tido acesso à educação. Durante o programa, você viu experiências nada boas pelas quais passaram várias participantes, não é? O que você aprendeu com isso?

Cecilia Gama – Ser trans no Brasil não é nada fácil, temos que lutar constantemente pra ter acesso ao mínimo, e sempre ter que provar o dobro comparado a qualquer pessoa cisgênera. Fico muito feliz em ver nomes como Erika Hilton e Duda Salabert (primeiras deputadas eleitas para a Câmara dos Deputados, em Brasília) lutando por nossos direitos em cargos de autoridade, isso me deixa esperançosa.  O “Born To Fashion” me proporcionou sair da minha bolha e conhecer outras realidades, até então não tinha muitas amizades com pessoas trans por vir de uma cidade onde não via muitas como eu, com isso me tornei mais empática e passei a tentar mais me ver no próximo.

Elas no Tapete Vermelho – O que falta para que as pessoas trans, de qualquer condição social e racial, sejam aceitas pela sociedade?

Cecilia Gama – Ainda temos uma luta muito longa pela frente, vivemos em uma sociedade que atrela nossos corpos a uma imagem marginalizada. Lutar contra isso e nos mostrarmos pertencentes aos nossos direitos enquanto seres humanos é a chave. Estamos nesse processo, mas acredito que atualmente nossa sociedade tem enraizados muitos preconceitos, por isso apenas o tempo e novas gerações poderão amenizar essa visão.

Cecília Gama (Foto: Pascoal Rodriguez E! Entertainment/Divulgação)
Cecília Gama (Foto: Pascoal Rodriguez E! Entertainment/Divulgação)

Elas no Tapete Vermelho – Como sua família aceitou sua transição?

Cecilia Gama – Inicialmente eu e minha família tivemos várias situações desconfortáveis por conta da minha transição, mas hoje fico feliz em falar que voltamos a manter contato. No final de 2022, tive a oportunidade de passar o Natal com minha família, que era algo que eu sentia muita saudade, sem falar que pude me despedir da minha avó, que acabou falecendo.

Elas no Tapete Vermelho – Como você se percebeu trans e como foi o processo de transição?

Cecilia Gama – Hoje quando olho pra trás vejo que, de forma inconsciente, negava  muito o fato de ser uma pessoa trans quando era mais nova. Só tive real noção disso por volta dos 16/17 anos, quando comecei a me perguntar porque não me enxergava no futuro ou porque me sentia desconfortável com meu corpo. O meu processo foi um processo doloroso como de muitas outras pessoas trans, lembro que não tinha muito com quem comentar sobre o assunto porque até na minha cabeça era algo meio caótico. Mas decidi dar um passo de cada vez, primeiro comecei a mudar ligeiramente minha estética e ver como me enxergava daquela forma. Depois de alguns meses, decidi iniciar a terapia hormonal, e depois de oito meses eu decidi contar meu verdadeiro nome aos meus amigos. Eu decidi passar por esse processo respeitando o meu tempo e minhas necessidades.

Elas no Tapete Vermelho – Você foi vítima de bullying na escola ou entre amigos? Como isso te marcou e como você enfrentou?

Cecilia Gama – Tive muita sorte nesse sentido, tenho ótimas memórias do meu tempo na escola, porém ainda não tinha iniciado minha transição naquela época, mas acredito que minha geração e as novas estão sendo mais abertas a assuntos como gênero e sexualidade.

Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)
Cecília Gama (Foto: Divulgação E! Entertainment)

Elas no Tapete Vermelho – Como a moda pode ser porta-voz das necessidades das pessoas trans no Brasil e no mundo? Apesar de ainda existir preconceito, a área é uma das mais abertas para a aceitação de pessoas trans, não acha?

Cecilia Gama – A moda é um veículo de comunicação muito forte, que dita muito a forma que um coletivo pensa. Por isso, fico muito contente em ver diversos corpos minoritários fazendo parte de grandes campanhas publicitárias, desfiles e em todos os meios midiáticos. Ainda percebo que muitas vezes nossos corpos convém quando se fala sobre monetização em cima da nossa imagem,  mas acredito que estamos aos poucos hackeando esse sistema e nos mostrando mais fortes enquanto um coletivo. Dito isso, podemos mudar a mentalidade de uma comunidade nos mostrando de diversas formas e em diversas áreas.

Elas no Tapete Vermelho – Há uma fórmula para enfrentar o preconceito da sociedade, dos amigos, da família, que muitas pessoas trans vivenciam dia a dia?

Cecilia Gama – Infelizmente gostaria muito de ter essa resposta, mas infelizmente não tem uma fórmula para enfrentar isso. Acho que a chave pra que isso machuque menos é tentar ser o mais forte possível e se blindar sempre, se apoiar nos amigos, na família que construímos durante nossa trajetória, seja ela de sangue ou de alma, e ser sempre segura de quem você é e onde quer chegar. É muito importante tentar se impor – se for possível, óbvio.

Elas no Tapete Vermelho – Qual a mensagem final que você gostaria de deixar a todos?

Cecilia Gama – Nunca desistam dos seus sonhos por maiores que eles sejam. Às vezes a caminhada não vai ser fácil, mas tentem aproveitar a jornada e nunca esqueçam de reconhecer suas conquistas e de onde você veio. E pras novas concorrentes que irão participar da nova edição aproveitem cada minuto, cada desafio e estejam abertas. O “Born To Fashion” me trouxe amizades que hoje considero como família e experiências que me deixaram muito mais forte.

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